domingo, 1 de junho de 2008

Fábrica de Matar - Parte I


Matar um inimigo é fácil. Basta disposição, oportunidade e alguma força. Matar milhares de inimigos é mais trabalhoso. Requer poder e, de vez em quando, uma guerra. Agora, matar milhões de pessoas, eliminar populações inteiras e varrer do mapa comunidades, não é para qualquer um. Requer um arraigado sentimento de superioridade, doses cavalares de fundamentalismo, e, acima de tudo, poderio científico e uma pitada de irracionalidade humana. E, do ponto de vista puramente logístico, um grande esforço de organização, planeamento minucioso e disciplina - é preciso ter uma máquina extremamente eficiente em mãos.
Poucas vezes na história, talvez nunca antes nem depois, um governo se sentiu tão à vontade para executar a terceira situação descrita acima quanto os nazistas na Alemanha, Áustria, Romênia, Iugoslávia, Itália, França, Bélgica, Holanda, Bulgária, Hungria, Letónia, Lituânia, Ucrânia, Bielo-Rússia e Checoslováquia, mas, principalmente na Polónia. Nesses países, os seguidores de Hitler colocaram em prática um projecto inédito de limpeza étnica que levou a deportações, evacuações em massa, expurgos, migrações forçadas, prisões e, por fim, o extermínio planeado de quase 6 milhões de pessoas.
O modelo ultimado desta máquina de extermínio só ficou pronto com os campos construídos e operados durante a guerra na Polónia. Entre eles, o maior, localizado em Auschwitz, no sul do país. Lá, entre Maio de 1940 e Janeiro de 1945, cerca de 1,1 milhão de pessoas morreram. A maioria eram judeus, mas havia prisioneiros de guerra soviéticos, dissidentes políticos polacos, ciganos e testemunhas-de-jeová. O meu esforço incidirá agora em explicar como os nazis planearam e operaram a maior indústria de extermínio de todos os tempos. Que inteligência esteve por trás dessa máquina de assassínio em massa? Que ideologia a justificou? E quem foi quem no sistema: militares, empresários, cientistas, arquitectos, políticos, juristas, carcereiros e burocratas.
Seis meses antes, a Alemanha tinha invadido a Polónia e iniciado a 2ª Guerra. Naquele tempo os nazis colocavam em marcha o plano de utilizar o número crescente de prisioneiros de guerra nas fábricas e indústrias alemãs, onde seriam explorados como mão-de-obra escrava. Em apenas 20 dias chegariam o primeiro milhar de prisioneiros de Auschwitz: todos homens polacos, fortes e saudáveis, acusados de resistência. Entraram pelo portão da frente, onde o sargento Hoss mandara escrever: Arbeit macht frei (“O trabalho liberta”). A frase, que cheira a um verdadeiro folhado de sarcasmo, revela a prioridade dos nazis naqueles primeiros tempos da guerra: conquistar territórios para a Grande Alemanha e transformá-los, rapidamente, em mais uma fonte de lucros para a indústria de guerra e desenvolvimento de armamento. Apenas 3 meses após sua inauguração, já havia 8 000 pessoas no local. Localizado a 30 km de um conjunto de minas com algumas das melhores jazidas de carvão da Europa, o campo de Auschwitz também chamou a atenção de um grande grupo industrial químico alemão, a IG Farben, que apresentou ao governo nazi um plano para instalar ali uma fábrica de borracha e combustíveis sintéticos. Os empresários fariam enormes investimentos na região. Em troca, pediam a garantia de mão-de-obra abundante. E barata, como é óbvio…
A ideia ganhou desde cedo um apoio de peso: o marechal Heinrich Himmler, comandante supremo da Schutzstaffel (tropa de elite alemã que servia directamente sob a alçada de Hitler), um dos homens fortes do Reich. Segundo o historiador Christopher Browning, da Universidade da Carolina do Norte, nos EUA, longe de ser uma iniciativa isolada, a construção de campos como Auschwitz a que Himmler chamava de colónia-modelo estava intimamente ligada aos planos de expansão da Alemanha, revelando dois dos principais temas que qualquer nazi recitaria de cor: o espaço vital para reedificação do império alemão e a superioridade racial. Himmler esteve em Auschwitz pela primeira vez em Março de 1941. Numa reunião secreta, ele anunciou o seu desejo: que a capacidade do campo passasse para os 30 000 homens, o que faria de Auschwitz o maior dos campos de prisioneiros. Esses planos de ampliação só foram descobertos recentemente, após a morte do arquitecto alemão Fritz Ertl, que tinha guardado reproduções fiéis do projecto. Himmler tinha ali seus próprios aposentos, para os quais cada móvel, dos aparadores às poltronas, das mesas de trabalho aos enfeites na parede, foi desenhado com exclusividade. Enquanto isso, os prisioneiros trabalhavam duramente, escavando fossas, fabricando tijolos, construindo prédios, abrindo estradas, colocando trilhos, carregando e descarregando pesados fardos. E, apesar do foco no trabalho como se diria hoje em dia , Auschwitz já demonstrava outra vocação: mais da metade dos 23 000 prisioneiros enviados no primeiro ano para o campo morreu antes de completar 20 meses na prisão, abatida pela fome, exaustão e maus-tratos.

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